Eduardo
Caetano
No último mês de março, uma das mais sagazes
tramas policiais produzida pela televisão brasileira completou 20 anos de
estreia. Parando o Brasil, no dia 13 de março de 1995 foi ao ar o primeiro capítulo
de “A Próxima Vítima”, novela de Sílvio de Abreu que inovou a narrativa do
horário nobre global não por usar o suspense e o tradicional “Quem matou?” como
elemento de seu folhetim, mas justamente por ser esta a trama principal.
“A Próxima Vítima”, que me ganhou aos 13 anos
de idade já na abertura, foi pioneira inclusive no sentido de inverter a ordem
do suspense, baseada em três questões: “Quem matou?”, “Por que matou?” e, acima
de tudo, “Quem será ‘A Próxima Vítima’?”. Quando um personagem começava a ficar
muito em evidência, e parecia ser o principal suspeito de cometer os
assassinatos, dificilmente ele não era a próxima vítima.
As principais ligações da trama eram marcadas
pelo elo entre os italianos ricos da família Ferreto, tradicional clã dono de
um frigorífico, com as mulheres de “útero seco” (hoje a opinião pública não
aceitaria a expressão); e os italianos pobres da família Mestieri, moradores de
uma Mooca ainda bucólica, fora da realidade da década de 90, como já admitiu
Sílvio de Abreu.
Marcelo (José Wilker) e Juca (Tony Ramos)
foram criados como irmãos na Mooca. Amavam Ana (Susana Vieira), dona da
“Pizzeria da Mamma”, no mesmo bairro. Ambicioso, Marcelo casou por interesse
com Francesca Ferreto (Tereza Rachel) há 27 anos, após o assassinato de seu
primeiro marido, Giggio di Angelis (Carlos Eduardo Dolabella) e manteve Ana
como amante e mãe de seus filhos por mais de duas décadas. Juca, simplório e de
bom coração, era dono de uma banca de frutas no Mercadão de São Paulo, que
recebeu seu nome na vida real e até hoje é atração turística. Juca casou com
outra mulher, teve filhos, ficou viúvo, e mantém um amor platônico por Ana, com
quem teve um filho sem saber, numa recaída que ela teve há 20 anos numa das
vezes que foi largada por Marcelo.
Quando Francesca descobre quem é a amante de
Marcelo e tenta matá-lo, começa o estopim dos assassinatos em série, inclusive
da própria Francesca, que no fim da trama é revelado como farsa. A megera, ao
ver que Hélio foi envenenado após beber whisky na sala vip do aeroporto, simula
a própria morte a fim de despistar o misterioso serial-killer.
E na pele da estudante de Direito Irene
(Viviane Pasmanter) e do descolado investigador Olavo (Paulo Betti), vamos
brincando de detetive e juntando todas as peças deste quebra-cabeça.
Em “A Próxima Vítima” tivemos assassinatos de
todas as formas, capazes de deixar Agatha Cristhie e Alfred Hitchcock com
inveja. Paisagens tipicamente paulistanas se tornavam cenários sombrios e,
praticamente cúmplices, dos assassinatos. A primeira cena era marcada pelo
atropelamento de Paulo Soares (Reginaldo Faria), que depois tem sua real
identidade revelada: Arnaldo Roncalho. O misterioso Opala preto (única pista
explícita ao telespectador desde o primeiro momento) atropela a personagem numa
movimentada avenida banhada pelas chuvas das águas de março. Depois, o duplo
envenenamento de Hélio Ribeiro (Francisco Cuoco) e Francesca Ferreto (Tereza
Rachel) no aeroporto, minutos depois de se reencontrarem.
O garçom Josias (José Augusto Branco) é
empurrado na linha do metrô. Júlia Braga é perseguida pelo Opala preto e
baleada. Ivete Bezerra (Liana Duval), idosa que fingia viver em estado
vegetativo após um atentado, morta a pauladas. Cléber Noronha (Antônio Pitanga)
é empurrado no poço do elevador, Ulisses Carvalho (Otávio Augusto) morre na
explosão do depósito de gás da pizzaria e Eliseo Giardini (Gianfrancesco Guarnieri)
é golpeado com um pé de cabra numa garagem e morre asfixiado com a fumaça dos
escapamentos de todos os carros. Num flashback, ficamos sabendo que Leontina
Mestieri (Maria Helena Dias) veio a óbito após uma queda de cavalo, que teve a
sela sabotada.
Clima
de máfia italiana com lista de horóscopo chinês
Todos os assassinatos estão interligados e no
meio da trama descobre-se que as vítimas recebem uma misteriosa lista de
horóscopo chinês com a frase: “Estão todos condenados”. Com o avançar da novela ficamos
sabendo que o primeiro marido de Francesca foi assassinado e a trama é
construída de forma a pensarmos que Marcelo foi o autor deste crime e,
consequentemente, de todos os outros.
Somente no último capítulo. ficamos sabendo
que Adalberto (Cecil Thiré) é o grande assassino. Ele foi seduzido por Francesca para matar
Giggio com a promessa de que ela se casaria com ele. O “inútil”, como é chamado
ao longo da trama pela dominadora Filomena Ferreto (Aracy Balabanian) comete o
assassinato dentro de um iate, onde era comemorado o ano novo chinês, mas na
verdade a megera armou tudo para se casar com Marcelo. Adalberto acaba se
safando do flagrante, já que as testemunhas subornadas por Francesca acabam
acusando um contador do Frigorífico, e se casando com a única irmã boa e fértil
do clã Ferreto, Carmela (Yoná Magalhães). Tornam-se pais de Isabela (Claúdia
Ohana), única herdeira da família e vilã da trama. Adalberto cai no mundo, vai
morar na Boca do Lixo, e deixa Carmela na miséria.
Muitos anos depois, quando Carmela arruma um
namorado mais jovem, Filomena, em nome da moral e dos bons costumes, decide que
o ex-cunhado deve reatar o casamento com a irmã, despertando secretamente o
ciúme de Eliseo, que sabe que Adalberto também arrastou uma asa para Filomena
antes de casar com Carmela. Adalberto então começa a receber cartas ameaçadoras
sobre o assassinato que cometeu e resolve eliminar uma a uma das testemunhas de
seu crime, num requinte sarcástico com o envio da lista do horóscopo chinês
para “alertá-las” sobre o motivo do trágico fim que as aguardava, como se
quisesse “devolver na mesma moeda”.
No entanto, o que o nosso assassino só fica
sabendo poucos capítulos antes do fim, é que a testemunha que lhe envia as
misteriosas cartas é a única que ele não sabia que presenciou, ao longe, o
crime da festa do horóscopo chinês, seu concunhado Eliseo.
Mais
dois assassinatos
Nós, telespectadores, só ficamos sabendo de
tudo no último capítulo. Os únicos crimes que conhecemos os autores são o de
Andrea (Vera Gimenez), morta por Isabela com um tiro, e Romana (Rosamaria
Murtinho), em assassinato planejado por Isabela e executado por Bruno
(Alexandre Borges), no qual a vítima é dopada e jogada na piscina da mansão
Ferreto. A derrocada dos vilões Bruno e Isabela é determinante para que
Adalberto seja desmascarado.
A personagem Isabela protagonizou duas
grandes, à época consideradas merecidas, cenas de violência contra a mulher
que, se em 1995 chegou a mexer com os setores feministas e de direitos humanos,
hoje seriam vetados integralmente. Após ter um caso com o marido de sua tia,
Marcelo, Isabela é descoberta pelo noivo Diogo na cama com o “tio”, minutos
antes do casamento. Vestida de noiva, Isabela leva uma surra de Diogo diante
dos convidados. Após um bofetão, Isabela rola da escada da mansão dos Ferreto e
ainda é chutada diversas vezes pelo noivo traído.
Meses depois, já casada com Marcelo, após
matar Andrea, fingir uma gravidez, prejudicar Ana e Juca e até a própria mãe,
Isabela se envolve com o marido de outra tia, Bruno. Eles são flagrados por
Marcelo de madrugada, na mesa da cozinha, e após humilhar o marido, ele parte
para cima dela com uma faca, deixando uma horrenda cicatriz em seu rosto.
Família
negra de classe média
“A Próxima Vítima” foi a primeira novela, e
talvez a única, a trazer uma família negra de classe média. O contador Cléber
era casado com a secretária Fátima (Zezé Mota). São pais do gerente de banco
Sidney (Norton Nascimento) e dos estudantes Jeferson (Lui Mendes),
universitário, e Patrícia (Camila Pitanga), colegial que sonha ser modelo.
Sidney namora a também secretária Rosângela (Isabel Filardis). Todos são negros
e moram num apartamento na Aclimação. A empregada da casa, Marinete (Catarina
Abdala) é branca.
A trama da família negra de classe média foi
uma ousadia à época e parecia correr paralela à história principal. Sem ser
panfletária, mostrava de forma natural que os negros estavam inseridos na
sociedade, sem ocupar papeis subalternos, como até então era uma característica
das telenovelas.
Aos poucos os personagens vão se envolvendo
nas outras histórias do folhetim. Após o telespectador ganhar a simpatia da
amizade entre Jeferson e Sandrinho (André Gonçalves), descobre-se que eles são
namorados, aliás o primeiro casal gay sem estereótipos. E Cléber é uma das
vítimas da lista do horóscopo chinês. No fim da trama, quando Sidney vai
trabalhar no Frigorífico Ferreto, dona Fátima resolve revelar em depoimento a
trama macabra do assassinato de Giggio di Angelis.
A novela fez tanto sucesso que o final foi
gravado à portas fechadas, horas antes de sua exibição. E a versão de Portugal
teve outro desfecho, que os brasileiros só assistiram na reprise. Nele, Ulisses
era o grande assassino. Ele se passava pelo irmão de Ana para vingar a morte de
seu pai, o contador acusado injustamente por Francesca. Para isso contava com a
ajuda de Bruno, seu filho nesta versão.
Confesso que, quando vi a versão original,
desconfiei de Ulisses. Sobretudo porque da "Pizzeria da Mamma" ele teve
facilidade para se deslocar e matar Júlia, Ivete e Cléber. E fiquei feliz por
ele ser cúmplice de Adalberto na primeira versão, já que, a mando do algoz,
ficamos sabendo no último capítulo que ele envenenou e serviu o whisky para
Hélio na sala vip do aeroporto.
Poderia ficar narrando muitas outras coisas
sobre “A Próxima Vítima”, já que nesses 20 anos assisti trechos mil em fitas
VHS, youtube, reprises em canais abertos e fechados. Se fosse falar do humor
que permeava a trama, como esquecer de Quitéria (Vera Holtz), Tonico (Selton
Melo), Solange (Patrícia Travassos), Carla (Mila Moreira),Tia Nina (Nicete
Bruno), Zé Bolacha (Lima Duarte), Tio Vitinho (Flávio Migliaccio) e a “bonitona
do Morumbi” Helena (Natália do Vale)? Como esquecer ainda as cenas do primeiro
mês na Itália, ao som de “Io che amo solo a te” (interpretado pelo cantor Sergio Endrigo) ou do carro de Andrea sendo
retirado da represa Guarapiranga?
Racismo, homossexualidade e drogas foram
abordados com coerência na trama, uma das primeiras a se propor a discutir de
forma mais profunda tais temas.
A única crítica que faço é que, para mim,
Juca e Ana terminariam juntos. Foram feitos um para o outro. Tinham química e
molho, à moda da casa. Marcelo merecia ficar sozinho. Por mais que Ana o
amasse, ele não cabia mais naquele universo.
Nos últimos minutos da novela, no melhor
estilo de filme policial, mais uma vítima é assassinada. Um personagem
misterioso e sensual interpretado por Cláudia Raia, eterna musa de Sílvio de
Abreu, entra em cena somente para morrer. Quem era? Por que morreu? Quem matou?
As três perguntas deram ao público a esperança de que a trama teria
continuidade. Não teve. E foi melhor assim. O gosto do suspense, mesmo depois
de 20 anos, até hoje é saboreado por seu público.
***
Ler significa reler, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem e interpreta a partir de onde os pés pisam". Essa frase, do teólogo Leonardo Boff, resume bem a personalidade do jornalista Eduardo Caetano. Nascido em janeiro de 1982, ele é formado pela Universidade Católica de Santos e encontra nas observações, sempre muito coerentes a respeito da vida real e da teledramaturgia, respostas que distribui a quem está disposto a ouvir. Atua, também, como assessor de imprensa.
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