terça-feira, 14 de abril de 2015

“Rainha de Sucata” completa bodas de prata

Eduardo Caetano*

“Sucateira! Ferro velho, fogão velho, peça de motor! Sucateeeeeeeeira!!!”. Como esquecer Regina Duarte, na pele de Maria do Carmo, aos berros, com sua caminhonete velha, tirando forças das entranhas para voltar a vender ferro-velho? Pois é, o sucesso “Rainha da Sucata” acaba de completar bodas de prata no último dia 2 de abril. E o momento é oportuno para relembrarmos esta trama, que trazia uma boneca de sucata dançando lambada na abertura e caiu no gosto popular.

Feita por encomenda pelo aniversário de 25 anos da Globo, em 1990, “Rainha da Sucata” marca a estreia de Sílvio de Abreu no horário nobre. A trama, que foi ao ar no início do Governo Collor, traz um Brasil retrato de São Paulo com pobres enriquecidos e ricos falidos. A novela conta a histórica de Maria do Carmo Pereira, a menina pobre, de família portuguesa do bairro Santana, filha de um sucateiro e de uma dona de casa, que estuda no colégio particular com crianças ricas (não é explicado se ela tinha bolsa ou não) e se apaixona pelo principal playboy da turma, Eduardo Albuquerque Figueiroa (Tony Ramos). Vítima de bullying em seu baile de formatura da oitava série, é humilhada pelo amor da sua vida e amigos com um banho de lama. Nas suas costas colaram um cartaz com a inscrição: “Rainha da Sucata”. Uma versão ingrata da noite de Cinderela.

Os anos se passam e a tradicional e quatrocentona família Figueiroa, dos Jardins, vai à falência e vive apenas de aparências. Maria do Carmo se torna a maior empresária do Brasil no ramo de venda de automóveis. Fiéis a suas raízes, ela e o pai foram comprando os terrenos ao lado e construindo praticamente um castelo no popular bairro do Santana, onde acontecem promovem churrascadas e feijoadas aos amigos.

Do Carmo é dona de um prédio na Avenida Paulista, no qual funciona sua empresa. Nossa protagonista resolve apostar numa casa de shows chamada “Sucata”, onde a lambada, ritmo em evidência à época, é a grande atração do estabelecimento, que fica no alto de seu edifício. O prédio, aliás, é praticamente um dos protagonistas da trama.

Ainda no primeiro capítulo, falido e sem perspectivas, Edu Figueiroa toma um porre e aposta com um mendigo bêbado que vai pular do alto do prédio da Sucata. E pula. Só que o “suicídio” do nosso mocinho não se completa porque ele está usando uma capa e, pela peça de roupa, fica preso no letreiro “Sucata”. Edu é resgatado e vira capa de jornal, expondo a derrocada dos Figueiroa. O artifício do pulo do alto do prédio e do letreiro “Sucata” é reutilizado no fim da novela, mas para revelar uma trama macabra.

Ela pode tudo!
Soberana, Do Carmo vem de dois casamentos e é noiva de Gerson (Gerson Brenner). Mas não está satisfeita. Dentro daquele mulherão, praticamente uma máquina, mora uma menina apaixonada, que nunca esqueceu o amor dos tempos de escola. E, como ela pode tudo, Maria do Carmo decide comprar o amor de sua vida.


Ela sabe que a madrasta de Edu, a terrível Laurinha Figueiroa (Glória Menezes) é perdidamente apaixonada por ele. O autor utilizou a mitologia grega como referência para criar a personagem, inspirando-se na história de Fedra, que se apaixona pelo enteado Hipólito. Mas Do Carmo compra essa briga. Nossa mocinha, não tão convencional, usa de todos os artifícios para conquistá-lo. Joga vinho do vestido de Paulinha (Claúdia Ohana), namorada de Edu, para tirá-la de uma festa e o agarra. Decide se tornar sócia de sua madrasta, patrocina sua corrida, patrocina seu projeto de lançar um novo automóvel no mercado... E ele casa com ela. E só. Edu, na condição de ter sido “comprado”, recusa-se a ter uma vida conjugal. É aí que começa a derrota da Rainha da Sucata.


O fim do Império
Dona do pedaço, Maria do Carmo vive como verdadeira rainha. Sua mesa em forma de carro na presidência da Do Carmo Veículos marcou época. No entanto, após gastar mundos e fundos com Edu, Maria do Carmo descobre que seu pai, Onofre foi amante de Salomé (Fernanda Montenegro) por mais de 40 anos, deixando metade da fortuna para ela e seus meio-irmãos, Caio (Antônio Fagundes) e Mariana (Renata Sorrah). Além disso, numa jogada absurda, Maria do Carmo aposta suas ações com os acionistas e perde, sem contar que descobre não ser a verdadeira proprietária do terreno onde tinha um edifício na Avenida Paulista, já que seu pai e o falecido marido de Dona Armênia (Aracy Balabanian) teriam enganado a viúva na compra do terreno.

As armações do vilão Renato (Daniel Filho) também contribuem para a falência da sucateira. Renato, inclusive, seduz e se casa com Mariana para se apropriar da fortuna de Onofre. Porém, pouco antes de falir definitivamente, Maria do Carmo é humilhada pelo marido e atira nele, indo para trás das grades. À medida que ela começa empobrecer, a trama vai perdendo o tom cômico e ganhando um ar sinistro, meio de suspense.

No fim das contas, sobra para nossa heroína a miséria e a vontade de vencer. É neste momento que ela volta a vender sucata e acaba despertando, inconscientemente, o amor de Edu.


Maria do Carmo X Laurinha Figueiroa: Universos que se confrontam
Extravagante, usando roupas com cores berrantes, falando alto, gargalhando e curtindo a vida, Maria do Carmo era um personagem solar. Já Laurinha, sempre discreta, de gestos comedidos, falando baixo e com roupas sóbrias, chegava a ser meio sombria. Mais do que duas personagens que se confrontavam, Maria do Carmo e Laurinha representavam dois universos em conflito. Assim como nas grandes novelas: Raquel X Maria de Fátima (Vale Tudo), Tieta X Perpétua (Tieta), Xica X Violante (Xica da Silva).

Laurinha faz de tudo para derrubar Maria do Carmo. Mas, após a mocinha ficar pobre e começar a se reerguer, a vilã se dá conta que Edu realmente ama Maria do Carmo. Neste momento, já sabemos que Laurinha é autora do assassinato do marido diabético Betinho (Paulo Gracindo), pois trocou injeções de insulina por glicose, teve um filho fora do casamento, Rafael (Maurício Mattar), jogou ácido numa ex-empregada e a colocou na cadeia por ela ser uma ameaça ao seu caso extraconjugal.

Na miséria, prestes a ser desmascarada pelo assassinato do marido e sem o grande amor da sua vida, Laurinha chegou ao fim da linha. Então astuta uma das mais cruéis, absurdas e geniais armadilhas que uma vilã pode armar para a mocinha: ela se suicida e deixa a culpa para a inimiga.

No ápice do ódio, a madame vai à casa de Maria do Carmo, aproveita que Neiva está sozinha e, com uma conversa esfarrapada, leva embora a máquina de escrever da adversária. Escreve cartas ameaçadoras e envia para si mesma. 

Uma semana antes do fim, durante o show de sua filha Adriana (Cláudia Raia) na “Sucata”, as arqui-inimigas protagonizam uma das mais eletrizantes cenas da teledramaturgia. Laurinha atrai Maria do Carmo para o alto do edifício na Paulista (novamente ele), finge que vai jogá-la lá de cima e diz “Seria muito pouco para você. Um dia eu te disse que queria te ver apodrecendo numa cadeia, junto com os ratos. E é para lá que você vai”. Parte para cima dela e lhe arranca um brinco. A mocinha berra de dor e medo, com a orelha sangrando. Segurando a joia com todas as forças, a vilã solta uma gargalhada macabra e diz: “Eu nunca vou ser feliz com o Edu, mas você TAMBÉM NÃO VAI! Sua sucateira ordinária!”. Laurinha vai se afastando até a beirada e Maria do Carmo clama para que ela não pule, mas antes de se jogar do prédio, a vilã grita: “Sua vida acaba agora!” e salta para a morte.

A única testemunha é o vilão Renato, que está disposto a prejudicar Maria do Carmo. Nossa heroína foge e, com a ajuda de Edu, fica escondida por um tempo onde a polícia jamais a encontraria, na mansão da suicida. Mas, como o texto de Sílvio de Abreu é genial e cíclico, o suicídio de Laurinha do alto do edifício remete ao pulo de Edu no primeiro capítulo. E, assim como ele ficou preso pela capa no letreiro, o sapato de Laurinha fica pendurado na “Sucata”. Além disso, a marca de sapato de Laurinha no cimento fresco no alto do prédio (que Renato tentou camuflar) faz a investigação concluir que ela pulou, ao contrário da versão de que ela foi empurrada.


O estilo cômico de Sílvio de Abreu no horário nobre
Ainda no início da trama, duas cenas antológicas, de comédia rasgada, marcam “Rainha da Sucata”. O português Onofre, pai de Maria do Carmo, morre nos primeiros capítulos, deixando a viúva Neiva (Nicette Bruno). Na hora do enterro, a vizinha, Salomé, tem um surto e, arrancando a blusa e levantando a saia, acaba revelando que foi amante do finado por mais de 40 anos e morrendo junto com ele. Fernanda Montenegro, mais uma vez, dá um show de interpretação e rouba a cena tragicômica.

Ainda na apresentação da novela, a estabanada Adriana destrói um show de Marília Pêra, interpretando a si mesma, com suas trapalhadas. A “bailarina da coxa grossa” forma um hilário triângulo amoroso com o gago e confuso professor Caio e “o purgante” Nicinha, que depois vira biscate.

A trambiqueira chique Isabelle (Cleide Yáconis), mãe da francesinha Ingrid (Andréa Beltrão), também levou o público aos risos.


Dona Armênia é uma novela á parte
O que falar de Dona Armênia e “suas três filhinhas” Gerson, Gino e Gerardinha? A primeira personagem a participar de duas novelas (fez tanto sucesso que dois anos depois o autor a trouxe de volta na trama de “Deus nos Acuda”), marcou época com seu bordão: “Vou botar essa prédio na chon!”. Aracy fazia o público rolar de rir, seja por suas artimanhas, por trocar o gênero com seu sotaque ou por seu romance com o quitandeiro Moreiras (Flávio Migliaccio).

Verdadeira dona do terreno na Paulista, ela ameaça implodir o edifício para pegar sua propriedade de volta. Passa a novela toda ameaçando: “Vou botar essa prédio na chon!”. No passado, o português Onofre e o falecido marido de Armênia, o italiano Giácomo, fizeram a amante turca de Giácomo, Samira, se passar por Armênia e falsificar sua assinatura para fazerem negócio no terreno.

Anos depois, Armênia consegue reaver seus direitos e se torna “o Rainha do Sucata”. A cena em que ela explica aos acionistas da empresa como “um mulher da bairro” consegue ser “dono de uma prédio no Avenida Paulista” é impagável.

Quem foi rainha nunca perde a Majestade
Uma mocinha sem papas na língua, Maria do Carmo era única, apesar de ter características de duas personagens marcantes de Regina Duarte: Viúvia Porcina (Roque Santeiro) e Raquel (Vale Tudo). Tomou banho de lama, deu banho de ouro nos seus inimigos e, tal qual como Dante, foi ao inferno e voltou - foi, inclusive, a mocinha que desceu mais ao fundo do poço nas novelas. Termina a novela novamente milionária, mas desta vez com o amor de sua vida. Porém, se for preciso, não duvido que arregaçaria as mangas novamente e se colocaria a berrar: “Sucateira! Ferro velho, fogão velho, peça de motor! Sucateeeeeeeeira!!!”.


***

Ler significa reler, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem e interpreta a partir de onde os pés pisam". Essa frase, do teólogo Leonardo Boff, resume bem a personalidade do jornalista Eduardo Caetano*. Nascido em janeiro de 1982, ele é formado pela Universidade Católica de Santos e encontra nas observações, sempre muito coerentes a respeito da vida real e da teledramaturgia, respostas que distribui a quem está disposto a ouvir. Atua, também, como assessor de imprensa.


Maria do Carmo volta a vender Sucata



Salomé surta no enterro de Onofre



Dona Armênia em reunião com acionistas da empresa




Suicídio de Laurinha


Show da inauguração da Sucata


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